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"Roupas sujas" por Patricia Melo

Leonardo Brasiliense


Patricia Melo (escritora)
No Facebook, em 06/07/2018.

Venho de uma família grande e vivi a minha infância e adolescência em Assis, uma pequena cidade do interior do sul do Estado de São Paulo, onde meu pai era um dentista popular e querido, e eu era a "filha do dr. Paulinho".
Mas é sobre minha mãe que quero falar. Ela foi professora secundária e depois universitária e desde o meu nascimento, quando ela teve a primeira crise, até sua morte, a depressão sempre foi um fantasma em sua vida. E na nossa. Até os meus quinze anos, eram frequentes suas recaídas e internações. A introdução do lítio no seu tratamento mudou, para melhor, sua qualidade de vida, e nos trouxe uma nova mãe : menos enérgica, incapaz de nos dar os velhos beliscões, mas totalmente apta para dar conta de sua vida familiar e profissional. De qualquer forma, o que quero dizer é que sua doença marcou tremendamente a vida de cada um dos seus filhos. Primeiro, com seu sofrimento, que era uma espécie de protagonista da família. Depois, com sua forçosa ausência na nossa rotina, para tratamento. Para complicar tudo, sua recuperação não era garantia de nada. O perigo sempre nos rondava. Aos sete anos, só de observar seu olhar e a maneira como segurava o cigarro, eu sabia perfeitamente quando ela iria entrar numa crise. Outro problema era a cisão na família, imposta pela doença : de um lado ficavam minha mãe, meu pai, minha avó, e os adultos, que tentavam salvar nossa mãe, e do outro, estávamos nós, os filhos, aturdidos. (Certa vez, ao visitá-la no apartamento de minha avó materna, em São Paulo, fui advertida a não abrir as janelas. Por quê? perguntei confusa. Foi dessa forma, aos oito anos, que descobri que as pessoas se matavam "voluntariamente") .

Faz onze anos que ela morreu. Meu pai também morreu. E meu irmão mais velho já se foi. Em outubro completo 56 anos. Todos meus irmãos deixaram Assis, se casaram, separaram, casaram de novo e alguns estão novamente solteiros. Um voltou para Assis, e cuidou de nossos pais, quando eles mais precisaram. Fiz terapia, alguns de meus irmãos também. Cada um seguiu sua vida. Cada um, num canto. Virei escritora. Tudo mudou para mim e para meus irmãos. Mas a doença de minha mãe ainda sobrevive em mim, e em cada um de seus filhos. Ela moldou nossa família, marcou cada um de nós. Ela explica muitas coisas. E toma a culpa de tantas outras. E por que essa roupa suja fora de hora?

Porque acabei de ler Roupas Sujas, de Leonardo Brasiliense. Não lembro de ter lido, nos últimos tempos, uma narrativa tão especial e comovente sobre família como a que encontrei neste romance. A história – e não se trata de spoiler, vocês verão - começa com a morte de mãe no parto do caçula. E essa morte, como a doença da minha mãe, vai ser estrutural na vida de cada membro da família. O livro vai muito além dessa pulsante ausência materna. Mostra como a família se organiza para lidar com a perda, e o fardo que todos carregam para o resto de suas vidas. Um dos filhos vira escritor, como eu. O romance que lemos, é o que ele escreve, a partir de suas memórias. Mas não é só isso. A narrativa salta de suas lembranças e alcança outros filhos, e nessa polifonia de vozes, vemos os nós cegos e buracos da família sob diversos pontos de vista. Se não nos reconhecemos num, – lá estamos no outro. Porque toda família, por mais solar e afortunada que seja, é sempre esburacada e cheia de nós cegos. E no centro dessa questão, está outra, igualmente fundamental: nossa família jamais deixa de de ser nossa família, não importa o quanto a vida e nós mesmos nos transformemos. O livro de Brasiliense mostra isso de forma concisa, sem pieguismos ou
apelações mas com muita pungência. Seu retrato da vida na roça, da sociedade patriarcal e dos personagens patéticos e trágicos do mundo rural são feitos com maestria. Só me resta agradecer à Lucia Porto, que me indicou a leitura. Baita livro.

 

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