Fortuna Critica

Faroeste shakesperiano na Serra Gaúcha

Leonardo Brasiliense


(Publicado pela Companhia das Letras, `Roupas Sujas` tem ecos de faroeste e Shakespeare)

Mateus Baldi
(Escritor e roteirista, fundador da plataforma literária `Resenha de Bolso`)
No Estadão, em 20/01/2018.

Você, leitor, está diante de uma família. Não uma família qualquer, é claro. Uma família gaúcha, de uma colônia no interior do estado, com seus sete filhos e anos e anos de ressentimentos. Você, leitor, está diante de um romance cuja força se concentra em uma primeira voz poderosa – Antônio – que observa o mundo ao redor com doses cavalares de estranhamento. Você está diante de um romance cujas roupas sujas do título estão pura e simplesmente encardidas. Mas não se desespere. A lama está a caminho.

Escrito com precisão cirúrgica pelo vencedor do Jabuti Leonardo Brasiliense, Roupas Sujas trabalha no regime do dito e não dito. As perguntas que parecem se retorcer na imaginação do leitor são diluídas com o avançar das páginas num cálculo quase perfeito. A trajetória de Antônio é a trajetória de uma família de imigrantes italianos no sul brasileiro dos anos 1970. E nesse contexto, além de sons (distantes) e fúrias (próximas), nada além do bruto se pode esperar.

Diante de toda a recente produção nacional voltando-se para as agruras do homem urbano, o gaúcho Leonardo Brasiliense abre sua frente a machadadas de western. Embora curto, Roupas Sujas dá conta de explorar as particularidades de cada personagem sem cair no didatismo ou clichês. Ecos de Shakespeare podem ser encontrados ao fim da leitura, mas como contar o amor e a violência sem aludir às fugas desesperadas – literais ou não?

Antônio é o sexto de sete filhos, explora o mundo no limite que a sociedade lhe permite e vai lentamente sucumbindo a uma observação cínica não muito difícil de compreender. Até onde ele sabia, a vida na colônia era regida por funções bem específicas, e a morte da mãe logo na primeira página, ao dar à luz o caçula, causa uma ruptura incorrigível. O abismo das relações humanas vai se alastrando a cada linha dos capítulos curtos. Não sobra muito espaço para o leitor respirar. É bonita a forma como Brasiliense explora a inocência das crianças e a avalanche dos acontecimentos brutais que permeiam a narrativa sem nunca perder o que parece ser uma espécie de ácida ternura. Tempo para fôlego, se há, ocorre de forma paradoxal na iminência dos confrontos.

Em quase 200 páginas, o fio da navalha parece se equilibrar entre cortar e raspar – ora o leitor é brindado com um esguicho de sangue literário, ora com camadas sendo descobertas sem que se tenha a menor dúvida de onde seguir – adiante. Como bem diz um dos personagens, “a gente nunca está seguro”. A frase resume bem o que é o livro. A possibilidade de segurança íntima e/ou social é sempre interrompida por alguma imposição da vida, como se forças externas (que não o próprio Brasiliense) dissessem: “Olha, é muito bonito o que vocês estão tentando atingir, mas, infelizmente, não vai ser possível.”

A esse objetivo estético pretendido, Brasiliense adiciona o perigoso recurso das notas de rodapé. Majoritariamente corretas, elas se destacam para oferecer pontos de vista além da narrativa principal, doses de informação que o leitor provavelmente não esperava, mas que fazem toda a diferença. E se digo que são majoritariamente corretas, é única e exclusivamente por culpa das últimas 50 páginas, onde talvez resida o único – e grande – problema do livro.

Roupas Sujas fica por conta de Antônio o tempo todo. Ou assim somos levados a crer, mesmo que a primeira página já informe que se trata da seção de Antônio. Só que esquecemos disso. Porque é um baita livro, uma baita narrativa minimalista bruscamente interrompida após mais de 120 páginas. E aí o que nos resta? Vinte e cinco folhas de informações complementares, não interessa ditas por quem, que fazem Roupas Sujasvirar outro livro. Sai o faroeste, entra a cidade, o urbano, o caos do concreto olvidando de uma vez por todas a poeira e a serra gaúcha, reduto das colônias. Escolha justa por parte do autor e festejada por alguns leitores, a troca de vozes parece tirar deste livro sua grande potência – o minimalismo, a contemplação. Houvesse insistido em mais cinco páginas e a satisfação do grande mistério que permeia a primeira parte, Brasiliense teria finalizado este romance com chave de ouro.

Roupas Sujas, portanto, é um livro para ser sentido, mais que lido. Ao encará-lo, se assim o fizer (o crítico recomenda que o faça), tenha por objetivo lançar um olhar honesto sobre a vida. Sinta a dor de cada alma fugidia, o terror de não saber o que virá por aí, os embates de Antônio com a colônia, a cidade, a vida, a morte, o amor, a dor, as proibições e as poucas liberdades. Por fim, quando fechar a última página, respire fundo. Você vai sentir o cheiro de lama.

 

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